Militarismo, regime heterossexual e práticas de resistência, por Alejandra Londoño e Norma Cacho

Esta é uma tradução que compõe uma série de três textos elaborados pela ekipa organizadora do X Encontro Lésbico-Feminista de Abya Ayla (X ELFAY, Bogotá, Colômbia, 2014), cujo objetivo era nortear as reflexões das participantes sobre os três eixos centrais daquele Encontro. Para mais informações sobre os ELFAY, veja o documento de memórias elaborado pelas compas da Colômbia: http://glefas.org/download/biblioteca/lesbianismo-feminista/memoria-x-elfay-colombia-2014-v.pdf

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Sub-eixo 3: Militarismo, regime heterossexual e práticas de resistência
Alejandra Londoño e Norma Cacho

a) O que entendemos por militarismo e militarização?

Para começar, parece-nos pertinente enunciar de maneira sucinta o que entendemos por militarismo e militarização, o qual implica inicialmente na enunciação e análise de duas dimensões: a material, com a qual nos referimos à militarização; e a ideológica, por meio da qual propomos a análise do militarismo. (1)

A militarização é, entre outras coisas, o uso das forças armadas para combater as ameaças internas o externas aos estados-nação, e a realização de ações policiais, como o combate ao crime organizado. Ela se refere, então, ao campo bélico e está associada aos fatos, acontecimentos e efeitos tangíveis ou explícitos; além disso, participarão desta dimensão os ordenamentos globais e locais da indústria armamentista, a seguridade nas armas imposta a partir da lógica dos estados nacionais, os exércitos, os conflitos armados internos, os serviços militares obrigatórios.

A força física e armada, utilizada desde o processo de colonização para a submissão dos povos originários e africanos e que, depois de séculos de modernização, continua sendo utilizada em uma ordem global para instalar 7 bases militares americanas na Colômbia, ou para submeter povos como o palestino, o curdo, o sarauí e, nas lógicas internas nacionais, para controlar um possível levantamento dos povos, ou para sustentar economias como a do petróleo e o narcotráfico. Além disso, tem sido uma ferramenta fundamental para a instauração do medo e a expansão de projetos como o neoliberalismo. Deste modo, se refere à dimensão material do militarismo e, com certeza, implica no controle das pessoas e dos territórios, incluídos os corpos das mulheres.

Poderíamos também agregar que o militarismo se constitui como instituição na condução política dos Estados. Assim, a lógica militar se instaura como a essência do poder do Estado, quando se entrega aos militares, tanto institucional como individualmente, o mando, o poder de decisão e a supremacia do poder.

Atualmente o militarismo conforma boa parte das práticas políticas, desde programas estritamente militares (ou seja, de segurança), até políticas econômicas, de produção, de “desenvolvimento” ou de cooperação. Provoca tanto violência direta (assassinatos, desaparecimentos, feminicídios, deslocamentos forçados, etc.), como violência estrutural, na medida em que é um mecanismo de controle das populações em prol das políticas econômicas neoliberais, da instauração de megaprojetos de investimento e do aumento da presença de empresas transnacionais. O militarismo conta com um ordenamento global, conseguido nos últimos séculos em boa medida graças ao papel transcendental dos Estados Unidos.

Os Estados Unidos não intervém somente política e economicamente na vida dos territórios da Abya Yala (entre outros) mas, além disso, intervém militarmente com treinamentos, venda de armas, com a instalação de sistemas de vigilância e espionagem (incluída a instalação de bases militares, a cargo de um comando especial das forças armadas americanas, encarregado de controlar as ações militares de meio continente). A esta intervenção somam-se os acordos e iniciativas de cooperação com os governos subordinados, por meio dos quais pretendem estender não apenas sua influência nas políticas de segurança nacional dos países, sobretudo latinoamericanos, mas que a sua própria segurança nacional seja prioritária para outros países, particularmente com os quais divide fronteiras e interesses estratégicos.

A presença militar direta gera dúvidas e rechaço entre alguns setores da população e das comunidades, sobretudo os organizados. Por isso são acompanhados de múltiplos mecanismos de entrelaçamento com a população que aparecem como alheios à esfera militar, e que respondem diretamente às lógicas da militarização (entre os quais se destacam os programas das USAID – Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional). Contribuindo com dinheiro, assessoria, apoio tecnológico, capacitação ou questões similares, a USAID tem uma história vinculada aos golpes militares nas décadas de 60 e 70 do século XX. Nos anos posteriores às ditaduras militares, sua presença se tornou mais notória na região da América Central, marcada por guerras e, na atualidade, se estende visivelmente aos países estratégicos, como Haiti, Colômbia, México, Guatemala e Honduras, a quem foram outorgados um financiamento de 1224; 582; 290; 217 e 212 milhões de dólares, respectivamente, em apenas 3 anos, de 2010 a 2012.

Nos últimos anos, a estratégia norteamericana de dominação do mundo (a mesma que rege seus desdobramento e ações militares), além das econômicas, midiáticas e até culturais, se refere à “dominação de espectro completo”. Este é o conceito chave por meio do qual se reorganizaram os assuntos militares e políticos nos EUA desde o final da década de 1990. A doutrina de “dominação do espectro completo” supõe ocupar todos os espaços, todas as dimensões da vida, todos os lugares, dissuadir qualquer iniciativa contestatória, qualquer transgressão das regras táticas do poder e, não funcionando, aniquila-la. Abarcar todas as dimensões da vida supõe uma política combinada na qual o econômico, militar, midiático e cultural tenham objetivos comuns. Em termos econômicos, os megaprojetos de investimento marcam a amplitude da dominação cúmplice das redes privadas espalhadas territorialmente pelas empresas transnacionais; militarmente, o emprego de comandos, frotas, bases militares e leis contrainsurgentes universais que globalizam o terror e o disciplinamento; na cultura, a regulação da educação, suas formas e conteúdos devem orientar as sociedades em torno da visão de mundo dos dominadores, imposta pelos meios de comunicação massiva e outras políticas de controle.

Assim, podemos afirmar que nos encontramos frente a uma nova investida militar na América Latina, apoiada e promovida pelos governos em turno, subordinados aos interesses estratégicos e de segurança dos EUA. O governo americano, além de extrapolar, também impõe seus interesses bélicos, sob um novo esquema de ampliação das suas fronteiras, transnacionalizando sua guerra contra o terrorismo, usando a fachada da luta contra o crime organizado, particularmente o narcotráfico. Ainda que essa guerra se imponha com vários pretextos, no fundo seus objetivos são a expansão econômica e controle social e político dos povos e seus territórios, baseado na força militar. Os saldos deste cenário nos mostram condições de vidas deterioradas, aumento da violência estrutural e política, deslocamento e desaparição forçadas, orçamentos desviados das necessidades básicas da população para a compra de armas e a espionagem, um aumento das violações dos direitos humanos, a perda de liberdade de trânsito, assim como uma série de mecanismos contundentes de violência explícita contra as mulheres, por meio de estupros e torturas sexuais que implicam em um aumento porcentual dos feminicídios.

A dominação militarista implica, além disso, na criminalização dos movimentos sociais e também da pobreza. Assim, as novas políticas de segurança nacional promovem o endurecimento do Estado e o controle de um amplo espectro das populações. A ampliação de faculdades dos exércitos militariza regiões indígenas, campesinas e afrodescendentes onde existem processos organizativos de resistência às políticas neoliberais de controle geoestratégico dos recursos naturais, por exemplo. As lutas sociais ainda estão vivendo um contexto de militarização e contrainsurgência, no qual o Estado autoritário usa a violência seletiva, ocasionando desaparições forçadas, encarceramento e perseguição.

No entanto, com o objetivo de compreender a complexidade dos efeitos do militarismo inclusive em contextos não militarizados, consideramos necessário retomar o componente ideológico do militarismo, o qual tem sido abordado há bastante tempo pelos movimentos antimilitaristas. O campo ideológico do militarismo transcende a opressão bélica, ainda que consiga o seu sustento, expansão e controle em boa medida graças a ele. Consiste, portanto, no domínio social e cultural, na presença e na incorporação das lógicas e dos valores militares na cotidianidade das pessoas e nas formas de organização social.

É uma ideologia que se filtra nas bases culturais e sociais da população, como formas de resolver os conflitos ou de organizar a economia, as relações sociais e pessoais, entre outras. São os discursos, os meios e as mediações da quais se valem as estruturas militares para a sua permanência, para legitimar o uso da força, a eliminação sistemática e, portanto, a guerra.

Consideramos oportuno não perder de vista que a militarização e os efeitos do militarismo nem sempre são os mesmos, nem se manifestam com a mesma intensidade, portanto é importante nos perguntarmos sobre a sua presença nos territórios que não se encontram em guerras ou conflitos armados internos. É possível pensar em territórios onde não exista militarização? De acordo com a nossa leitura, após a recorrência histórica e colonial dos exercícios de coerção e imposição violenta, o militarismo se instalou como uma necessidade “natural” para a ordem social, conseguindo a legitimidade explícita da militarização. Dessa forma, não seria necessária a presença dos militares para comprovar a existência do militarismo.

Se ampliarmos a pergunta pelas manifestações do militarismo e da militarização em territórios aparentemente não militarizados, podemos tornar mais complexas até as conexões globais desta estrutura e da colonialidade do poder presente nas mesmas. Assim podemos problematizar os motivos pelos quais países como a Suécia, sem viver conflitos armados, seja um dos principais produtores de armas mundialmente; que o Congo seja onde se explorem as principais minas para a extração do coltão, um dos minerais mais usados na fabricação de mísseis mundialmente; que a Colômbia seja um dos países que mais gasta com defesa no mundo; e que o México seja um país completamente subordinado às políticas de segurança nacional militar dos EUA.

Finalmente (e reconhecendo que faltam muitos elementos para aprofundar), acreditamos que é necessário mencionar que, para refletir sobre o ordenamento global do militarismo, é possível propor sua análise a partir da sua imbricação como sistema com o colonialismo, o racismo, o patriarcado e o capitalismo. A proposta vai de encontro com a consideração de que o militarismo é muito mais do que os aparatos militares nas ruas; é a violência histórica tornada “natural” no heteropatriarcado capitalista e racista. É um dos meios para assegurar seu domínio e reproduzir uma ordem sistêmica que domina colonialmente populações inteiras. Isto é, no entanto, uma pergunta, à medida que continuamos a reflexão de considerar o militarismo um sistema de dominação particular imbricado com as demais dominações, ou se podemos considera-lo unicamente como uma manifestação-efeito de imbricação com os sistemas de dominação.

b) Como se relacionam o militarismo e a violência com o regime político da heterossexualidade?

Pensar a heterossexualidade como um regime político implica em entendê-la como uma estrutura de poder que ainda atua em todas as relações sociais e atravessa a economia, a política e o social, o qual torna necessário deixar de considerar a heterossexualidade só como uma prática sexual normativa, e entendê-la a partir de sua estrutura sistêmica, presente em todos os âmbitos da vida.

Nesse sentido, a heterossexualidade como regime se encontra na distribuição do poder, na divisão de gênero e racial do trabalho, em todas as normas sociais e culturais do sexo e do gênero, e no sexage “definido como uma dupla relação social de apropriação: uma apropriação privada, física, direta das mulheres em forma individual por parte de seus pais, maridos e namorados; e uma apropriação coletiva da classe das mulheres por parte da classe dos homens”. Esse regime política significa também a imposição e, portanto, a naturalização da diferença sexual, entendida como a concepção bimórfica de dois únicos sexos: homens e mulheres. Evidenciar tanto os argumentos ideológicos, como os efeitos materiais do regime político da heterossexualidade, supõe, como já mostrou Monique Wittig, entender que categorias como “mulher”, “sexo”, “homem”, “diferença” são construções históricas não universais com efeitos nas vidas das pessoas.

As estruturas materiais e ideológicas do militarismo são sustentadas, em boa medida, pelo regime político da heterossexualidade, daí que as forças armadas sejam uma das representações mais ostentosas da organização patriarcal. A uniformidade, a hierarquia do poder, o culto ao chefe, a obediência, a obtenção de qualquer interesse por meio da intimidação pelas armas o pela demonstração de força, a violência física, a competição e a exaltação da figura do macho fazem parte de um campo simbólico explicitamente heteronormativo.

Além disso, as estruturas militares são a reafirmação da concepção bimórfica dos sexos, assentada na exacerbação dos papeis designados a homens e mulheres, daí que o conceito de masculinidade esteja diretamente associado a homens, força, violência e armas, enquanto feminilidade está relacionado a mulheres, reprodução, submissão, trabalho sexual e cuidado. A partir desta lógica, as mulheres, além de “sujeitas” a proteger, são propriedade que os homens devem defender pelas armas (não é em vão que a maioria dos feminicídios em países como a Colômbia, por exemplo, seja nas mãos da polícia, de militares ou do narcotráfico, entre outros). No caso do México, apesar do aumento porcentual dos feminicídios estar relacionado com o contexto de violência militar frente à presença do crime organizado, as mulheres continuam sendo assassinadas pelos homens que consideram estes corpos seus pertences. Estamos falando do militarismo e da militarização como uma das estruturas por meio da qual historicamente se legitima e naturaliza o sexage, como forma de apropriação coletiva e individual das mulheres conseguidas com o uso da força.

No entanto, falar em apropriação coletiva e individual das mulheres no marco das estruturas militares tem outra série de implicações. Como já dissemos, as lógicas militaristas são estratégias colonialistas que não se esgotam com a implementação de planos de guerra, senão que estão associadas à imposição de projetos que buscam apropriar-se das terras e territórios habitados por comunidades indígenas, afrodescendentes e camponesas, assim como dos recursos naturais como a água, a terra, as sementes, etc. Neste processo, o militarismo, a violência e o regime heterossexual se relacionam na apropriação e abuso dos corpos das mulheres, que se convertem em objetos de disputa e objetivo de guerra.

Os estupros sistemáticos, entre outras formas de uso da força, em contextos de guerra ou conflitos armados, não são apenas uma expressão dos desejos pulsantes da tropa, obedecem a estratégias de intimidação contra a comunidade, servem para gerar deslocamentos, acender a territórios estratégicos, controlar e inclusive para saciar vinganças e demonstrar superioridade frente ao inimigo (daí que, por exemplo, no exército nacional colombiano esbravejem diariamente cantos de guerra como o seguinte: “guerrilheiro, filho da puta, arrancaremos os seus olhos, beberemos o seu sangue e estupraremos suas mulheres”). Evidentemente não estamos falando de todos os corpos, mas particularmente dos corpos de mulheres racializadas, indígenas, camponesas e urbanas empobrecidas, nos quais se materializam as expressões mais agressivas da guerra econômica e militar neoliberal.

O regime heterossexual, conjuntamente com o militarismo, defende a retórica patriarcal que intensifica as mensagens de domínio e controle contra as mulheres, potencializando eventualmente a violência feminicida, como um recurso de extermínio de mulheres racializadas.

Finalmente, parece-nos importante indicar que analisar as imbricações dos sistemas de opressão pela raça, sexo, gênero e classe com as estruturas da militarização é um exercício que abre muitas perguntas e campos de reflexão, uma vez que, como já mencionamos, a militarização (e o militarismo) não opera da mesma maneira em todos os territórios, o que significa pensar as experiências de todas com o objetivo de compreender as conexões e complexidades de uma estrutura tida como parte “natural” (e, portanto, ahistórica) das relações sociais.

Igualmente queremos mencionar que, até o momento, não conseguimos encontrar mais documentação que analise a relação entre o militarismo e a experiência lésbica. Sabemos que os estupros de lésbicas como medidas corretivas tem sido denunciados em diversas ocasiões e recentemente no território sul-africano. Sabemos que em territórios onde há conflitos armados agudos o armário se converte em uma estratégia de proteção e resistência para quem não pode nem andar de mãos dadas pela rua. No entanto, acreditamos que esta é uma problemática não só silenciada, mas também sobre a qual fizemos poucas perguntas. Portanto, consideramos que esta é uma pergunta central do X Encontro, que também pode constituir uma contribuição muito importante para o movimento lésbico feminista na Abya Yala, ainda mais quando estamos convencidas de que a rebeldia lésbica e feminista já é uma fuga do sistema e uma resistência às estratégias de dominação.

Algumas perguntas para o debate

1) Podemos considerar o militarismo e a militarização como um sistema que deve ser pensado de maneira imbricada à colonialidade, ao racismo, ao patriarcado, ao capitalismo; como uma estrutura que sustenta e permite s sobrevivência dos demais sistema de opressão; ou como um efeito dos sistema já mencionados?

2) É possível rastrear os efeitos particulares do militarismo e da militarização nas vidas das lésbicas? Como aprofundar essa análise, considerando que pouco foi dito a respeito?

3) O que significa fazer política lésbica feminista em contextos de militarização e conflito armado em zonas de influência narcoparamilitar?

4) Como a política lésbico feminista se articula com outras lutas, indígena, afro, da periferia, de jovens, etc., frente a estes contextos?

5) Como podemos entender o militarismo a partir da sua imbricação com o patriarcado, o capitalismo, o racismo e o regime heterossexual?

6) Como podemos articular ações lesbofeministas frente a invisibilidade dos efeitos das políticas militaristas nos corpos de mulheres e lésbicas racializadas?

7) Em que medida, como lésbicas feministas, reproduzimos a cultura militar em nossas experiências e relações?

Notas:
(1) Apesar de considerarmos oportuno fazer esta diferenciação para entender os alcances desta estrutura, é importante ter em conta que o militarismo funciona por meio da militarização, e esta se sustenta graças à legitimidade e os efeitos sociais e culturais que gera, ou seja, ao militarismo. Fazemos esta aclaração porque as duas dimensões que expomos fazem parte de uma mesma estrutura, mas consideramos que a sua revisão por meio dos campos ideológico e material possibilita fazer análises mais complexas, que nos permitam, por exemplo, entender o alcance do militarismo em territórios não militarizados.